Acomodada no meu assento de avião para retornar à Coimbra ainda estava sob o impacto da noite anterior.
O avião taxiava na pista para alçar o seu vôo. Fechei os olhos enquanto subíamos para as nuvens. Pensei que a minha subida poderia ter sido bem diferente.
Naquela noite, em Paris, eu resolvera fazer algo já programado antes da viagem. Subir ao Arco do Triunfo ao anoitecer e ver Paris, à noite, lá de cima. E foi o que fiz.
-Boa noite! Alguém ao meu lado dizia. Olhei ao redor, só ele estava ali,
-Boa noite! Respondi. E arrisquei,
-De onde você é, para falar a minha língua?
-Do Brasil. E você ?
-De Portugal. Qual é seu nome?
Ouvi quase um sussurro, dito lentamente:
-D-e-s-t-i-n-o
-Como, seu nome é "Destino"?
-Não, eu estava pensando alto. Sempre penso que se é o destino que me traz as coisas ou se sou eu que as levo para ele.
-Como assim?
-Meu nome é Ulisses e como sei que você quer saber qual minha profissão, sou jornalista. E você?
-Sou pesquisadora da Universidade de Coimbra.
-E o que pesquisa?
-Atualmente, estou pesquisando sobre o "Pensamento".
-Pensamento? Belo tema.
E completou:
-Estava olhando você há mais ou menos meia hora.
-Não diga, respondi. E o que viu de interessante?
-Aparências, por enquanto nada mais, mas encantadoras para uma noite em Paris.
-E o que você pensou?
-Ah! Pensei na Dulcinéia de Dom Quixote.
-Que estranho, por quê?
-Sabe, olhando Paris daqui de cima, vendo essa imensidão de prédios, ruas e gente, fico a imaginar como seria um Dom Quixote da atualidade.
-E imaginou? Perguntei-lhe, já curiosa, em conhecer mais o pensamento daquele homem, loiro de olhos azuis e vestido todo de preto. Se não fosse o luar, por certo, só lhe enxergaria a cabeça.
-Vejamos. O que permanece até os dias de hoje da vida desse aventureiro? Sem dúvida, Dulcinéia permanece. Porque ainda existe mulher. Você, por exemplo. Rocinante, o cavalo de Dom Quixote, o que seria hoje? Meu Deus, que sacrilégio. Me perdoe Cervantes, por essas comparações mundanas. O que conduziria o "Aventureiro de La Mancha" hoje? O automóvel, penso eu. Sim, não há dúvida. Existem semelhanças fortes, além disso lhe serviria de armadura também. E a "Espada"? O que representaria melhor a "Espada"? Vejamos. Cervantes, por favor, não te levantes de tua tumba sagrada! Espada, espada....O dinheiro ! É o dinheiro! Serve bem. Sancho Pança? E você, fiel escudeiro? Difícil! Quem ? Quem? Não acho. Você não existiria nos dias atuais, meu caro Sancho Pança. Minha história prosseguiria sem você. Viu amigo Cervantes, vamos ter que inventar um novo personagem ou deixar nosso aventureiro sozinho!
-O que você acha? É possível imaginar Dom Quixote nos dia atuais? Perguntou-me, Ulisses.
-Você esqueceu algumas coisas, repondi-lhe.
-O que, esqueci?
-Por exemplo, a "Loucura" de Dom Quixote.
-Bem pensado. Tantas idéias me surgem para a loucura. Vejamos: "Consumismo"?- O cara seria doido por consumismo. Religião?- nosso aventureiro seria um fundamentalista, um terrorista. Ou seria "doido" por ser arrastado por uma sociedade preconceituosa?- por exemplo, quem não for a Paris, não pertence à casta dos cultos, dos bem sucedidos. Ou seria "doido" por lutar contra as hipocrisias do homem moderno? -"Em nome de Jesus, eu te curo. Quem sentia dores nos pés, não sente mais!" . Ou "doido" por querer entender certas ações humanas? -"Ouro nas Igrejas e pobres nas favelas, bem fiéis"! Ou Avião moderno para um e seus companheiros e aeroportos cheios e parados para outros! Ou ainda "doidão" por lutar por uma educação melhor e ver os recursos indo para os paraísos fiscais para encher os bolsos dos inteligentes? Ou "doido" por lutar pela ecologia, contra guerras, contra a exploração do homem pelo homem? Não faltam motivos, nos dias de hoje, para a "doidera" do nosso Dom Quixote da atualidade.
-É, não faltam. Respondi, olhando para ele e achando que sua história teria coerência.
Um certo tempo decorreu até que retomássemos o diálogo. O que estava ele pensando? Estaria completando o quadro de sua história? Não tive coragem de interromper. Permaneci olhando as estrelas do céu de Paris e sua beleza à noite vista de cima do Arco do Triunfo. Ao longe a torre Eifel, tão imponente, varando as alturas. A noite está perfeita para pensar em Piaf. Ah! Edith Piaf, seus amores e seus cantares. A minha recordação mental do ""Hymne À L’Amour", foi interrompida.
-E você, Doutora, em que pensa? Tão quieta? Trouxe-me ele de volta dos meus pensamentos.
-Meu Deus, aí está o pensamento de milhares de homens e mulheres, lhe respondi. Em Paris, em cada lugar, em cada monumento, em cada praça, aí está o "Pensamento" transformado em obras. Elas estratificam cada idéia, cada momento do pensamento das épocas. Podemos reconstruir a história do pensamento humano através de suas obras. Você quer esperimentar, perguntei-lhe?
-Quero!
-Então, feche os olhos e desça comigo até um banco de Champs-Elysées. Estamos sentados e olhamos para cá e não vemos o Arco do Triunfo. Ele ainda não existe. Estamos na época antes de sua construção. Qual é o momento histórico? Recorde seus estudos enquanto estudante de jornalismo.
Aí está ele agora construído. Pronto. Esta obra é um "pensamento"! Ela tem sua história. Não é apenas uma construção fria.
-Mas, quantos a vêem assim, perguntou-me Ulisses.
-É claro, as visões são diferentes! Cada um cria a sua história, como você fez com Dom Quixote.
Quando acabei de dizer essas palavras, Ulisses agarrou-me por trás, encostou-me à parede e senti uma de suas mãos prendendo fortemente meus braços atrás, quase sufocando-me. Uma dor aguda subia pelas minhas costas. Agora olhava atônita para a paisagem noturna, tão linda, de Paris, a outra mão de Ulisses segurava algo parecido com uma faca e a encostou no meu pescoço, pressionando-o de tal modo, que meu coração disparou, minha respiração enchia e esvaziava o meu peito. Mal pude sussurrar:
-O que é isso, Ulisses?
-Veja as horas, Olhe no meu pulso.
Olhei com pavor para o seu pulso que segurava o objeto do meu medo e respondi:
-Falta pouco para as três horas.
-Isso mesmo faltam dois minutos para as três horas da madrugada. Estamos aqui, penso que só nós dois. Daqui a dois minutos o Arco do Triunfo, símbolo dos franceses, voará pelos ares e nós também. Adeus símbolo dos "pensamentos", como você diz.
-Não faça isso, pedi desesperada. Você é um terrorista?
-Já é tarde, na minha religião não há lugar para arrependimentos. Não tem como voltar atrás. Dentro de poucos instantes os explosivos programados para as três horas em ponto, detonarão e tudo ficará sereno depois. Vamos olhar para o relógio e esperar.
Tentei me desvencilhar das mãos de Ulisses, mas era impossível. Pareciam cordas poderosas a envolverem-me e me imobilizarem. Só me restava mesmo esperar. Despedi-me da vida e aguardei. Duas horas e 58 minutos, duas e cinqüenta e nove... Cerrei os olhos...nada mais podia fazer.
Repentinamente senti-me livre. Olhei instintivamente para o meu relógio, Três horas e um minuto. Não explodiu?
Virei-me para Ulisses e ele já estava indo embora. Corri ao seu encalço, segurei-lhe o braço e exigi que me explicasse o que estava acontecendo. Ele voltou-se com calma, olhou-me e disparou:
- Agora você tem a sua tese de doutorado!, disse-me ele, e virou-se para ir embora.
-Espere! Ele voltou-se e perguntou:
-Falta algo, Doutora?
-Sim, lhe respondi. Vamos trocar nossos cartões de endereços. Tenho uma proposta para lhe fazer.
-E qual é? Perguntou-me com ar frívolo, o jornalista.
-Você escreve a sua história e eu a minha e depois de prontas um envia para o outro. O que você acha?
-Ah! Quer descobrir como eu penso! Quer fechar a sua tese, hein, Doutora?
-Talvez, ainda não sei. Mas, acho que devemos isso um ao outro, disse-lhe.
-Pois bem, aceito sua proposta. Dentro de um mês a Doutora receberá a minha versão.
-Combinado. Mas, esqueça, por favor, o "Doutora", acho que você o está usando num sentido que me desagrada.
-Tudo bem. Até daqui há um mês.
-Até. Vi sua silhueta preta sumir naquela madrugada fria em Paris.
autor: ifh
terça-feira, 21 de agosto de 2007
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